Crônica: Suco gelado, cabelo arrepiado

“Se chama futebol mas se joga com as mãos, não é futebol de verdade”, já ouvi isso tantas vezes que me faltariam dedos para contar.

O kicker (punter um pouco também) e o goleiro são posições muito parecidas, pois eles são os únicos “anfíbios” dos seus respectivos esportes. Veja, são os únicos que podem tocar a bola com o pé ou com as mãos e só aparecem pontualmente no jogo. É até romântico pensar que por terem tal posição privilegiada, eles são justamente o maior alvo de críticas quando erram, ficam para sempre marcados por isso, ora, quanto mais se pode, mais se é cobrado. O sarrafo não é igual pra todos, muito menos justo. Qual o preço da (im)perfeição?

 

Uma história em quatro atos: Scott Norwood (imagem da capa), que foi kicker no Buffalo Bills e errou o Field Goal que decidiu o Super Bowl XXV no último lance do jogo. Ele acertou centenas de chutes ao longo da carreira, muitos game winners, mas é lembrado justamente por um, o que ele errou. Gary Anderson estava perfeito na temporada de 1998, acertou tudo, quer dizer… errou um, o seu último, o que levaria o Vikings ao Super Bowl. Goleiro Barbosa, que “frangou” no gol do Giggia, gol que deu a vitória ao Uruguai naquela fatídica final da Copa do Mundo de 1950, lance conhecido como o Maracanaço. Karius, ex-goleiro do Liverpool, que jogou mal a final da liga dos campeões e ainda hoje leva a alcunha de frangueiro. Ora, sempre haverá aqueles que se pegam como bode expiatório, mas há alguns que são realmente sacrificados ou expulsos ao deserto, para Bezalel, para o beleléu. Não se fala deles, inomeáveis, impuros, fracassos.

Kicker é a posição mais ingrata de todas! Não é só chutar uma bola no meio de um Y gigante, é um duelo mental que depende de todos trabalharem juntos para dar certo, um pênalti com 10 pessoas te passando a bola e 11 goleiros, você só tem uma chance, ah, e a bola parece um ovo, nem pra ser redonda ela é.

Chutar é uma das partes mais importantes e mais cruciais do jogo, assim como o goleiro é crucial para um time. Um kicker tem literalmente o jogo na mão, ou no pé, durante uns poucos instantes, o suficiente para se tornarem heróis ou vilões para sempre, uma cobrança de pênalti para consagrar tudo, ou nada. Sempre a corda bamba, transitando entre o bem e o mal, entre o santo e o profano, entre uma trave e outra. “Vem o snap, o holder ajeita e…”

 

O herói anônimo, cuja identidade jamais deve ser revelada. O Atlas moderno, que deve carregar nos ombros todo o peso dos céus. Não têm o direito de errar, não tem o direito se ser humano, de falhar. Mate o homem, ele não tem o direito de ser livre, está condenado a ser pra sempre perfeito, um titã, uma máquina automática, o sucesso é apenas a obrigação, qualquer coisa menor que isso é um fracasso, fracassados não tem vez. Vá grande ou vá pra casa!

Estamos vendo muitos field goals errados nessa wk1 de 2022, será má sorte? Acaso? Há algum problema com os kickers em geral? Não, isso apenas nos lembra que futebol se joga tanto com as mãos quanto com os pés.

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