É muito legal olhar para o banco do nosso amado Giants e ver uma mulher nele, ocupando a função de treinadora em tempo integral pela primeira vez na história do baseball profissional nos EUA, mas será que esse fato isolado demonstra uma mudança de mentalidade no mundo desse esporte fascinante? Por Patricia A. O. Fariasi
O ano de 2020 foi um daqueles anos que não vamos esquecer tão cedo: ano do início da pandemia do COVID-19, do cancelamento de diversos eventos esportivos (ou da realização parcial dos mesmos sem a presença do público), de uma temporada encurtada da MLB que (infelizmente) terminou com a vitória do nosso maior rival e da primeira vez que uma mulher foi contratada como treinadora em tempo integral – e passou a ser vista regularmente no banco do San Francisco Giants, a espetacular Alyssa Nakken.
Alyssa foi jogadora de softball ao longo da faculdade, tendo ingressado no Giants como estagiária do departamento de operações de baseball em 2014. Fez mestrado em gestão esportiva, trabalhou como diretora de informações do time de baseball da Universidade de San Francisco e, em janeiro de 2020, foi promovida a treinadora do Giants, se tornando a primeira mulher a treinar em campo em um jogo de baseball da liga principal, jogo esse contra o Oakland A´s vencido pelo Giants por 6-2. Sua camisa do jogo foi enviada para o Museu e Hall da Fama Nacional do Baseball, um fato que por si só já seria marcante, que demonstra reconhecimento de uma carreira que promete ser longa e vencedora.
É muito legal olhar para o banco do nosso amado Giants e ver uma mulher nele, ocupando a função de treinadora em tempo integral pela primeira vez na história do baseball profissional nos EUA, mas será que esse fato isolado demonstra uma mudança de mentalidade no mundo desse esporte fascinante? Porque Alysssa é a primeira mulher como treinadora na MLB, mas não a primeira mulher a entrar em campo no baseball dos EUA. Para onde foram essas outras mulheres? Por que não houve outras – ou continuidade nas carreiras daquelas que chegaram a jogar na MLB?
Historicamente falando, o espaço público, o que é externo ao lar, a rua e suas brincadeiras foram vistos como espaços masculinos, exclusivos para a atuação dos homens tanto na ação política (mulheres eram impedidas de votar ou serem eleitas na maioria dos países do mundo até a primeira metade do século XX) quanto nas decisões de cunho familiar (como administração de propriedades e recebimento de heranças). Assim, os esportes em geral também eram majoritariamente praticados por homens visto que os mesmos eram praticados em espaços públicos, sendo as mulheres malvistas – e mal faladas pela vizinhança – até mesmo por sua presença assistindo a prática esportiva. Ainda assim, times de baseball exclusivamente femininos surgiram no fim da década de 1890 nos EUA, sendo o mais famoso o Boston Bloomer Girls.
Os times exclusivamente femininos de baseball continuaram existindo como uma excentricidade para a sociedade machista dos EUA até a segunda guerra mundial. Com centenas de jogadores sendo convocados para se juntar ao exército, o campeonato da MLB ficou esvaziado de parte de suas estrelas, o que levou os donos dos times a pensarem em alternativas que suprissem a necessidade de renda daquele período. Então, foi quando surgiu a All American Girls Professional Baseball League (AAGPBL), que existiu no período de 1943 a 1954 e que chegou a ter times em doze cidades – times esses que contavam exclusivamente com jogadoras que se “adequassem aos padrões de beleza” dos organizadores da liga, ou seja, que não admitia mulheres negrasii. Jogadoras sensacionais como Toni Stone (que jogou pelo San Francisco Sea Lions) não participaram dos times da AAGPBL, ficando circunscritas ao espaço das Negro Leagues, que contavam frequentemente com times mistos. Com o fim da segunda guerra em 1945 e a lenta reintegração dos ex soldados aos times da MLB, o desejo de promover uma liga feminina desapareceu, voltando o baseball a ser um esporte praticado profissionalmente por homens, tanto como jogadores quanto como árbitros, técnicos, gerentes e majoritariamente como público.
Mulheres apareceram como jogadoras em ligas independentes de baseball ao longo da segunda metade do século XX, como Ila Borders, que jogou pelo Saint Paul Saints (time da American Association) e pelo Zion Pioneerzz (time da Western Baseball League) onde se aposentou em 2000, mas sem muito interesse pela grande mídia ou pela própria MLB. Na verdade, sem muito interesse por grande parte das mulheres atletas, que caminham quase sempre rumo ao softball (como nossa Alyssa Nakken) pelo fato das bolsas de estudos para mulheres no esporte universitário estarem lá, e aqui podemos identificar uma espécie de “círculo vicioso”: as bolsas de estudo universitárias para atletas existem para esportes que possuem uma liga universitária competitiva, que atrai mais atletas logo subindo o nível das competições, logo tornando essas competições mais assistidas pelas comunidades universitárias e redes de transmissão/mídias locais, logo formando atletas e público para a existência de uma liga profissional que se sustenta esportivamente e economicamente, atraindo mais jovens para as bolsas universitárias tendo em vista um futuro no esporte. Então, nos EUA tudo isso acontece para o softball – para o baseball, não. Com isso, é pouco provável que mulheres surjam como jogadoras de baseball em ligas profissionais pois não há uma cadeia de “retroalimentação” para tal fato, mas não para outras posições como árbitras, gerentes gerais ou técnicas, visto as aproximações que existem nesses níveis entre o baseball e o softball.
Pensando em toda essa história, é essencial ter uma mulher como técnica de um time (maravilhoso!!!) como o Giants, histórica e esportivamente relevante na MLB – representatividade importa, é a conquista de lugares de poder e decisão dentro de um espaço que até pouco mais de meio século atrás era visto como essencialmente masculino em todos os níveis, esse fato sozinho é impulsionador de sonhos e de possibilidades. Mas o fato de Alyssa ser treinadora de um time grande da MLB não significa que haverá mais jogadoras e técnicas nos times de maneira geral poque a estrutura que faz com que alguém chegue a esses espaços é essencialmente masculina, permitindo uma ou outra exceção que acaba sendo trilhada por atletas que conhecem o esporte profissional e suas variabilidades através do caminho do softball. Podemos dizer que há uma mudança em curso de mentalidade na MLB? Sim e não. Sim, porque a sociedade como um todo está mudando, discutindo cada vez mais representações de gênero, étnico-raciais e políticas e a Liga com seus times e donos de time precisam mudar para não se tornarem irrelevantes na sociedade atual. E não, porque ter uma mulher numa posição de treinadora (ou de GM, como Kim Ng do Miami Marlins) não muda a estrutura do “círculo vicioso” que faz com que o baseball feminino nos EUA seja quase inexistenteiii – e não há qualquer iniciativa no horizonte no sentido de mudar essa estrutura, como o fomento a uma liga feminina de baseball competitiva como foi feito em outros esportes, como o basquete.
i Patricia A. O. Farias é professora de História e apaixonada por baseball, especialmente pelo San Francisco Giants. Ela é participante assídua no podcast “Gigantes do Baseball”.
ii Esse fato é mostrado no filme “A league of their own” (Uma equipe muito especial), com Geena Davis, Madonna e Tom Hanks no elenco.
iii Não é inexistente porque existe de maneira não profissional. Um exemplo dele é a seleção dos EUA de baseball feminino.