Barry Bonds e a hipocrisia do Hall da Fama

Na última semana, vimos Derek Jeter e Larry Walker entrarem oficialmente para o Hall da Fama da MLB.

Walker era um grande jogador, completo no ataque e na defesa, MVP pelos Rockies, mas nunca teve uma carreira que gritasse “Hall da Fama”. No entanto, pelo conjunto da obra, ele entrou no HoF.

Derek Jeter foi o grande capitão do Yankees nas últimas décadas, um líder nato e jogador muito acima da média (exageros midiáticos a parte), mas nunca teve uma carreira que gritasse “um dos melhores da história”. No entanto, somado a todo o peso da imprensa de Nova York, ficou a 1 voto de ser eleito de forma unânime pro HoF.

O que nenhum dos dois tem no currículo é uma carreira que mudou o baseball, recordes que talvez jamais sejam quebrados, histórias quase lendárias sobre o medo dos adversários em enfrenta-los e premiações sem fim. Esse é Barry Lamar Bonds, o Rei dos Home Runs, o homem que mudou o rumo de uma franquia e uma cidade quando assinou com os Giants para a temporada de 1993.

Bonds está na lista de candidatos há 9 anos, mas não teve seu nome chamado, e ao que tudo indica, você também não vai vê-lo na próxima votação, sua última chance pelos meios normais. Mas porque um dos rebatedores mais temidos da história, líder de home runs na carreira e 7 vezes MVP não chega nem perto de ser eleito?

A resposta é simples: hipocrisia. Desde que o escândalo do doping foi exposto na MLB, a liga vem tentando tapar o sol com a peneira quanto aos inúmeros casos dos anos 1990 e 2000, e um dos modos de fazerem isso é deixarem os “dopados” de fora do Hall da Fama. Se a história fosse simples assim, tudo bem. Nós poderíamos concordar ou discordar, mas veríamos a liga aplicando um padrão único para todos.

Ah… mas é claro que nada pode ser simples assim. O buraco é muito mais embaixo. Podemos começar a explicar o problema citando uma história do início do baseball, lá nos anos 1800. Naquela época, o racismo era pra todos os efeitos legalizado nos Estados Unidos, e era praticamente impossível jogadores negros chegarem a MLB. Equipes se recusavam a enfrentar adversários com jogadores negros e, por acordos tácitos, evitavam contratar os mesmos.

Um dos líderes dessa pressão segregacionista era Cap Anson, um dos melhores jogadores da liga antes de 1900. Ele foi essencial dentro e fora de campo para a institucionalização da segregação na MLB. Talvez essa barreira tivesse caído antes de Jackie Robinson, não fosse a determinação do comissário da época, Kenesaw Mountain Landis, em manter a segregação. Apenas com sua morte em 1944, a situação começou a virar.

Querem adivinhar o que Anson e Landis têm em comum? Ambos têm uma placa de bronze em Cooperstown com seu rosto esculpido e seus “gloriosos” feitos gravados e expostos para todo mundo ver, membros antigos do Hall da Fama. Logicamente, nenhuma menção ao papel fundamental de ambos na segregação racial, apenas palavras como pioneirismo, integridade e liderança.

Esse fato, por si só, já faz saltar aos olhos o tamanho da hipocrisia do Hall da Fama ao pregar integridade e caráter como critérios de seleção, mas manter pessoas desse nível lá dentro.

Racismo pode, doping não. Mas não para por aí. Doping também pode, desde que a liga consiga um jeito de tapear, fingir que não existiu.

Novamente voltando aos anos 1800, um dos primeiros registros do uso de doping no baseball é de 1889, com o uso de suplementos de testosterona animal. Após a Segunda Guerra Mundial, o uso de anfetamina foi largamente difundido no mundo, devido ao uso em massa pelos soldados para aumentar a resistência e a concentração mental.

Imagine o quanto a anfetamina ajudaria num esporte onde jogadores já participavam de 154 jogos na temporada e sempre no máximo da sua concentração para acertar as rebatidas… Da lenda dos Yankees Mickey Mantle ao homem de ferro Cal Ripken Jr., é bem aceito que boa parte dos grandes jogadores das décadas seguintes a 2ª Guerra usavam anfetamina. E nessa época também se tornavam comuns os esteroides para aumento de performance.

A Major League Baseball, mais uma vez, não moveu um dedo para combater o doping. Por fim, quando a greve de jogadores de 1994 encerrou a temporada em agosto, sem um campeão, a liga perdeu audiência drasticamente. Era preciso fazer algo para trazer o público de volta… e o que seria melhor do home runs, demonstrações brutas de força que empolgavam torcedores por todo o país?

A corrida pelo recorde de 61 home runs no ano entre Mark McGwire e Sammy Sosa parou o país em 1998. Ambos usavam esteroides até o talo, e se o público não sabia, a MLB certamente não só sabia como incentivava. Afinal, trazia os fãs de volta e, consequentemente, trazia o dinheiro de volta.

Não sabemos quando exatamente Barry Bonds começou a usar esteroides, mas ele já havia vencido 3 prêmios de MVP, 2 pelos Pirates e 1 pelos Giants, muito antes da corrida maluca entre Sosa e McGwire. Bonds já era o melhor jogador da MLB, mas viu adversários menos talentosos o ultrapassando ao longo da década de 90. E aí, um dos jogadores mais competitivos da liga decidiu vencer em todos os campos, utilizando novas substâncias, reescrevendo o livro dos recordes do baseball e vencendo mais 4 prêmios de MVP seguidos.

Os anos 90 e início dos anos 2000 ficaram manchados como a Era dos Esteroides e muitos eleitores do Hall da Fama decidiram jamais votar em um jogador dessa época. Apesar disso, grandes jogadores como Ivan Rodriguez e Ken Griffey Jr. foram eleitos com facilidade. Ambos tiveram grandes mudanças no porte físico, semelhantes as dos jogadores que se dopavam.

Outro motivo pelo qual era muito raro pegar alguém no doping é que os esteroides eram proibidos desde 1991 pela MLB mas, veja que conveniente, não haviam testes antidoping! Os testes só começaram em 2003, quando o escândalo começava a ser descoberto. O comissário da liga que supervisionou e incentivou a Era dos Esteroides era Bud Selig. Onde está Selig agora? No Hall da Fama, obviamente.

Para concluir esse raciocínio, é importante enfatizar que em nenhum momento queremos argumentar que Bonds é inocente (mesmo que até o FBI tenha falhado em conseguir provas contra ele). A questão se Bonds usou ou não esteroides é irrelevante porque, como falamos, há décadas o seu uso é difundido no baseball e a liga faz vista grossa.

O fato é que o Hall da Fama já elegeu e aplaudiu jogadores, treinadores e comissários racistas e segregacionistas, já fingiu desconhecer o doping por décadas e, no golpe final da hipocrisia, elegeu o comissário que comandou o “show”. Mas decidiram que alguns poucos jogadores, como Bonds, Sosa, McGwire e Roger Clemens, deveriam ser tomados como exemplos de que “trapaças” jamais serão aceitas no Hall.

Se há algo para aguardarmos em um futuro próximo, é exatamente essa próxima eleição de 2022. Não porque há esperança para Bonds e Clemens, essa luta já está basicamente perdida. Mas porque entram na lista de candidatos Alex Rodriguez e David Ortiz. A-Rod foi pego no exame antidoping, admitiu e chorou em rede nacional e se tornou um comentarista querido por muitos. Já Ortiz, embora nunca pego, teve diversas acusações ao longo da carreira assim como Bonds. Só que por outro lado, Ortiz é adorado pela mídia, sempre foi simpático e se tornou a cara do Boston Red Sox após o atentado a Maratona de Boston, utilizando o time e o lema “Boston Strong” para ajudar a recuperar a cidade.

Veremos então até onde vai o nível de hipocrisia dos eleitores do Hall da Fama…

Por fim, um pensamento do Vini Farias que debatemos no podcast #23 do Gigantes do Beisebol. Será que parte da culpa não é nossa também, que valorizamos muito mais o Hall da Fama do que deveríamos? Não seria mais importante ter o nosso próprio time reconhecendo os ídolos, como o Giants fez com Barry Bonds, do que brigar e se estressar com o fato de entrarem ou não para um Hall que, por tudo que já comentamos, de limpo e moralmente correto não tem nada?

Ainda espero que um dia a justiça seja feita e Barry Bonds seja chamado a Cooperstown, NY, e entre no Hall da Fama, mas se isso nunca ocorrer, só quem perde é o Hall.

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